quarta-feira, 26 de março de 2014

Primun non nocere?



        Texto de Halana Faria de Aguiar Andrezzo
         A história da saúde da mulher é a história de um sucesso de “vendas” calcada em sua “tragédia biológica”. Ainda menina, na primeira menstruação, que tende a ser irregular nos primeiros anos, se consultar um ginecologista, pouco provavelmente sairá de seu consultório sem um contraceptivo oral. Aprenderá desde cedo que a pílula minimizará os efeitos da TPM e que tomada sem pausa ainda a poupará da menstruação. Fará ultrassons e mamografias regularmente. Ao primeiro sinal da menopausa terá a oportunidade mais uma vez de receber a prescrição de uma reposição.
         Não estranha portanto, que novamente com a vacina contra o HPV, seja   testada em NOSSO corpo, a introdução de nova tecnologia. Apesar de festejada por gestores, profissionais de saúde e grupos de defesa dos direitos das mulheres, aparentemente não há ainda motivos para tanta euforia.
         Sabemos que o HPV está implicado em 95% dos casos de câncer (sendo 70% destes causados pelos subtipos 16 e 18). Há ainda mais de 100 subtipos de vírus  e sua transmissão é pela via sexual em relações hetero e não-heterossexuais. Até os 30 anos a maioria das mulheres sexualmente ativas terão sido infectadas por algum subtipo viral. Na grande maioria das vezes nosso sistema imune dará conta de resolver a situação e quando não der o vírus poderá causar alterações celulares (observáveis microscopicamente na lâmina da coleta do papanicolaou) que podem levar mais de 10 anos para se transformar em um câncer de colo.
         A melhor maneira que temos de nos proteger dessa doença, é com a realização regular do preventivo ou papanicolaou (entre os 21 e 65 anos), e a recomendação atual é que depois de dois resultados normais, o exame seja realizado a cada 3 anos (1). Deve-se lembrar ainda, que realizados inapropriadamente, mesmo os exames de rastreio, podem ter efeito negativo sobre nossa saúde. No caso do preventivo pode haver sobrediagnóstico, levando a biópsias, ansiedade e tratamentos desnecessários.
         O rastreio com preventivo pode reduzir a mortalidade por câncer de colo em 80% (2) mas ainda não sabemos que efeito a vacina contra o HPV pode ter sobre a mortalidade ou mesmo sobre a incidência de casos de câncer de colo. O que os estudos demonstraram até agora é que ela diminui os casos de lesões pré-malignas/tratáveis (NICII e III) associadas aos subtipos 16 e 18. Precisaríamos de pelo menos 10 a 20 anos para demonstrar o efeito que essa vacina teria sobre a incidência da doença e sobre a mortalidade que causa. O que também não está claro é como se comportam as lesões associadas aos demais subtipos virais com a vacinação.
         Uma outra questão importante diz respeito ao marcador de desigualdade da doença. Mulheres pobres morrem mais de câncer de colo. Sua vulnerabilidade social as afasta dos serviços de saúde, suas necessidades de sobreviver antecedem suas necessidades de auto-cuidado. O que garante que essas mulheres buscarão a vacina nos centros de saúde? Será diferente o impacto que tem as propagandas e apelos para a realização do preventivo e o “marketing” da vacinação?
         A vacina também tem enfrentado controvérsias em outros países e o caso espanhol é peculiar. A epidemiologia do vírus na Espanha parece ser diferente: menos de 30% dos casos de câncer podem ser atribuíveis aos subtipos 16 e 18, e mesmo assim a vacina foi introduzida no calendário vacinal. Já há uma iniciativa popular organizada que chama-se Associação das Afetadas pela Vacina contra o HPV http://aavp.es/. No sítio da AAVP pode-se ler os relatos do que as mulheres acreditam sejam efeitos colaterais da vacina, entre eles repetidos casos neurológicos descritos como fadiga crônica.
         O Japão retirou a vacina do seu calendário oficial após não obter resposta do fabricante da vacina para a seguinte demanda: introduzir na bula, informação sobre sua possível neurotoxicidade.
         Mais impressionante é que sem que haja qualquer explicação, Merck (MSD) e GlaxoSmithKline (GSK), fabricantes das duas vacinas disponíveis no mercado, foram eximidas da necessidade de apresentear estudos da fase IV pelo FDA. Estudo  conduzido depois que o medicamento recebeu aprovação para comercialização que visa avaliar segurança, tolerância e eficácia de longo prazo.   
         As meninas brasileiras já estão sendo vacinadas, a não ser que seus pais encaminhem à escola termo de recusa informada. Mas onde os pais estão sendo realmente  informados? Será essa informação parcial?
         Um dos encaminhamentos do Seminário em comemoração aos 30 anos do PAISM foi que essa discussão seja levada às instâncias de Controle Social do Município com o objetivo de questionar, informar e cobrar esclarecimentos sobre as inúmeras dúvidas levantadas na ocasião. Entendemos ser urgente e função da sociedade fazer frente à pressão que a lucrativa indústria farmacêutica impõe aos gestores, profissionais e cidadadãs(ãos) de nosso pais.

1 -   Moyer Va. Ann Intern Med 2012; 156: 880-91.
2 - Ault KA. J Natl Cancer Inst 2011; 103: 1352-3.  
  
Halana Faria de Aguiar Andrezzo
Médica Ginecologista e Obstetra
Mestranda Faculdade de Saúde Pública /USP

 Texto escrito com intuito informativo a partir das apresentações e discussão no Seminário: A Saúde da Mulher na Saúde Pública – 30 anos do PAISM, realizado no dia 13/3/2014 na Faculdade de Saúde Pública.